AINDA VALE A PENA IR AO CINEMA?
Em tempos idos, ir ao cinema era um ritual. Não vou repetir o que já foi dito e redito, escrito e reescrito por muitos outros. Era o fascínio das grandes salas, com o seu foyer, o bar, as sessões com documentários, desenhos animados, depois as “apresentações”, agora mais conhecidas por “tailers”, depois o filme, ir ao cinema era todo um programa. Ainda apanhei o fim dessa era.
Depois vieram as salas-estúdio. Aí era todo o contrário, salas pequenas, muitas vezes desconfortáveis. Mas eram salas para um público específico, um público cinéfilo militante, e que tinham uma programação alternativa à das grandes salas, fosse com sessões de cinema clássico ou com filmes de autores habitualmente fora dos circuitos comerciais. Se as grandes salas eram uma questão de rito, estas foram uma questão de fé.
E agora? Qual o prazer de nos enfiarmos em salas encafuadas em centros comerciais, guardadas à entrada pelas vendas de hamburgers, pipocas, coca-cola e demais produtos para-alimentares, que ainda por cima têm igualmente autorização de entrar, desde que devidamente acompanhados por espectadores-deglutidores de fast-food alimentícia e cinematográfica?
Que prazer há em partilhar uma sala com multidões que vão ao cinema por desfastio, habituadas à cultura televisiva, que se comportam na sala como se estivessem em casa, comendo, bebendo, falando alto, atendendo o telemóvel?
Que prazer há em aturar projecções medíocres, frequentemente semi-desfocadas, por vezes mesmo com problemas mais sérios (recentemente no Corte Inglês o último Socorsese começou a ser projectado sem som, foi necessário sair da sala e andar à procura do gerente; já há poucos anos me tinha acontecido, no Mystic River, a projecção começar com a lente errada; e no “Big Fish” ser projectado todo o genérico com as luzes da sala acesas; nas salas pequenas do Monumental e no Saldanha a focagem da imagem é quase sempre medíocre; o isolamento sonoro no King é péssimo, no Quarteto nem se fala; etc., etc., etc.)?
Nem rito, nem fé. A "sessão de cinema" transformou-se num objecto de consumo como muitos outros, que se frequenta a meio do dia de saldos, ou para passar o tempo antes do jantar, ou para "estar com os amigos" ou a namorada ou o namorado.
é por isso que cada vez vou menos ao cinema, excepção feita ao caso especial da Cinemateca, claro, e cada vez vejo mais filmes em casa, em DVD.
Em casa, tenho na mesma a sala escura. Escolho o momento em que quero ver os filmes, e a companhia na qual os quero ver. Tenho condições para não ser interrompido, a não ser por algum imprevisto. A qualidade de projecção desafia a da maioria das salas de Lisboa, e a de som nem se fala. Apenas falta alguma dimensão ao écran, mas apenas quando comparado com as grandes salas; no entanto, o rácio entre dimensão do écran e distância ao mesmo é em casa muito aproximado do de uma sala pequena do circuito comercial.
A magia passada do “ir ao cinema” há muito que desapareceu. Na falta da mesma, ao menos em casa tenho o sossego e o conforto que me falta cá fora.
E disfruto de um tipo diferente de magia; ir á estante, pensar o que quero ver, escolher, ler as notas da capa, eventualmente consultar alguma fonte sobre o filme, preparar a projecção. Sou espectador, programador, projeccionista, coleccionador, divulgador, estudioso. É a experiência cinéfila total.