Neste início de ano, foi um dos temas favoritos de analistas e “opinion makers” a questão dos ordenados elevados de alguns gestores, desde que o presidente da república se manifestou creio que “preocupado” com os mesmos no seu discurso de ano novo.
Tive aliás a oportunidade de assistir a parte de um programa da SIC Notícias dedicada ao tema, programa aliás com participantes de muita qualidade (cujo nome não fixei, infelizmente) e onde foram levantadas várias questões interessantes.
A mim o que me espanta é que o tema tenha sido descoberto agora, e logo por alguém como Cavaco, cuja actuação enquanto chefe de governo em muito terá contribuído para este estado de coisas. Mas isso são contas de outro rosário.
É há muito sabido que Portugal tem os salários mais baixos da Europa, mas que os seus gestores têm salários ao nível dos mais altos, mais altos mesmo que em países como o Reino Unido; e que o rácio entre os níveis salariais de topo e de fundo em empresas portuguesas de maior dimensão atinge níveis impensáveis na maioria dos países europeus, se não mesmo na sua totalidade.
Isto é, como aliás aponto um dos participantes no dito programa, simultaneamente uma consequência do nosso sub-desenvolvimento mas também um factor desse mesmo sub-desenvolvimento. Uma gigante e indesejável “pescadinha-de-rabo-na-boca”.
É claro que numa economia de mercado ninguém nega a importância das funções de gestão, a necessidade da gestão por objectivos, a obrigatoriedade de pagar mais aos melhores. E também não acho que o caminho para uma maior justiça social passe pela mesquinhez e inveja do “aquele gajo ganha imenso e eu ganho tão pouco”. É obviamente mais importante criar condições para que quem ganha pouco passe a ganhar mais do que baixar ou limitar artificialmente os salários muito elevados só “porque sim” se daí não resultarem benefícios directos para o país e as pessoas em geral.
Portanto, neste contexto, a questão a responder é: estes altíssimos salários prejudicam ou não o nível de vida da generalidade das pessoas, e é ou não benéfico para o país que os mesmos sejam limitados?
No tal programa da SIC-N (prometo que me vou tentar lembrar de qual era e de quem participa) levantaram-se como disse atrás algumas questões interessantes e pertinentes e vou-me socorrer de algumas delas para o raciocínio que se segue.
1 – A questão moralNum país pobre como o nosso, é imoral que haja esses níveis salariais tão desfasados da realidade que é a da maioria das pessoas.
O argumento é interessante e válido, mas receio bem que inútil neste contexto político-económico. Mais imoral ainda é o dinheiro que alguns podem ganhar sem sequer trabalharem, por terem herdado activos lucrativos em cuja gestão não participam, por especularem na bolsa, por fuga aos impostos, etc. etc.. Pelo lado da moral, haveria a meu ver muito que viria antes da questão dos altos salários.
2 – A questão do méritoEsta para mim é a questão essencial. Admitindo que a nossa sociedade é uma sociedade meritocrática, que realmente não é e estás longe de ser, estes gestores merecem realmente aquilo que ganham?
Comecemos pela questão da famigerada “gestão por objectivos”. Em teoria, se um gestor atinge os objectivos que lhe são propostos, merece ser devidamente remunerado por isso.
Mas, aí está, o que é “devidamente”? A questão dos objectivos e do seu cumprimento deve ser uma questão de toda a organização/empresa, e portanto o “prémio” devido pelo seu cumprimento deveria ser proporcionalmente partilhado por todos os que tivesse contribuído para a obtenção dos mesmos. O que se passa em Portugal é que o “mérito” só é reconhecido aos gestores de topo e frequentemente negado ao “middle management” e à generalidade dos trabalhadores. Isto e só isto permite que se acumulem nas mão dos gestores salários e prémios milionários que se negam à generalidade dos colaboradores.
Isto acaba por responder à pergunta “estes elevados salários prejudicam terceiros”? A resposta é “sim, porque numa lógica meritocrática parte desses salários/prémios seria devida a outras pessoas na organização/empresa que assim não recebem a justa compensação pela sua eficácia”. E isto, senhores, é um péssimo princípio de gestão e um mau serviço que a médio/longo prazo se presta à empresas.
Porque é que isto acontece? Porque no modelo actual se criou uma situação em que boa parte dos gestores e mesmo muitos accionistas se concentram exclusivamente em objectivos de curto prazo, pouco se preocupando com a criação de bases estáveis para que uma empresa possa ainda existir daí a 20 ou 50 anos (que era, reconheçamos, uma preocupação que existia em muitos capitalistas da “velha guarda”, e se calhar ainda existe num Bill Gates, por exemplo).
3 – A questão do mercadoUm argumento esgrimido foi o da lei de mercado; somos um país pequeno, e para se conseguir os melhores gestores é necessário pagar muito.
Este argumento parece-me um disparate óbvio, por duas razões.
A primeira é que, até pela dimensão pequena que temos, não há sequer gestores de qualidade em número suficiente que justifiquem a sua contratação a “peso de ouro”.
A segunda é que, num mercado global e numa lógica de Europa, é perfeitamente possível ir buscar para lugares de topo profissionais não portugueses. Se há lugares para os quais a nacionalidade interessa pouco, serão precisamente estes. E se como vimos os gestores europeus ganham menos que os portugueses, então isso serviria para baixar os valores salariais a este nível.
4 – ConclusãoPorque é então que acontece o que acontece em Portugal?
A única resposta que encontro é bastante aterrorizante; é que somos na prática comandados por uma oligarquia de gestores/empresários/políticos que no essencial se protegem mutuamente, com o objectivo principal de manutenção do essencial do seu poder e dos seus privilégios. E que por isso pagam bem aos seus membros e aqueles que mais próxima e lealmente os servem.
E essa oligarquia, na prática, é tão inimiga da existência de um verdadeiro mercado e de uma sociedade meritocrática mesmo dentro de um paradigma de liberalismo económico como é inimiga da construção de uma sociedade mais igualitária (nem vale a pena falar em socialista).
Fenómenos como a corrupção, o compadrio, a troca de favores, o “fazer um jeitinho”, o abuso de poder e de autoridade, são apenas o reflexo generalizado à escala mais vasta da sociedade desta realidade que se instalou há muito no seu topo, mudando os participantes mas mantendo o essencila desta “super-estrutura” (se me permitem a expressão).
Vivemos a perfeita e terrível imagem de uma “democracia burguesa” à moda do séc. XIX.
Esta é uma das razões pelas quais apesar de tudo prefiro a integração plena numa sociedade democrático-liberal à escala europeia do que continuar a ter a sua caricatura em “circuito fechado” em que vivemos em Portugal.